domingo, 11 de abril de 2010

Capítulo 19

Ainda posso ouvir de longe as gargalhadas dos "crentes" daquela igreja. Não sei se estão possuídos por demônios ou se estão apenas gozando da minha cara por ser um fiel seguidor de Jesus. Há outra igreja perto, quase no mesmo caminho que eu costumava pegar para ir para casa. Vou lá dar uma olhada.

Está aberta. Há pessoas na porta, com um telão na entrada. Esta igreja é uma das maiores da cidade. Nunca tive coragem de entrar nela por causa do que tenho ouvido pregar. Tem uma doutrina para lá de esdrúxula, vai além do que nos foi ensinado a cerca de dois mil anos. Não é possível adentrar, pois está superlotada, mas pelo telão posso ver quem é o preletor. Um homem de barba, bam aparada, bem vestido e bem assessorado por um séquito de seguidores. Eu o conheço de tanto ver na TV no seu programa. Um programa com maior nível de audiência dentre todos os outros programas evangélicos.

Ele fala, o povo extasiado diz amém, sem nem ao menos verificar na Bíblia se as coisas são de fato assim. Nem seria necessário, pois como na igreja anterior, nesta também as Bíblias foram destruídas e jogadas no tambor ali no lado. Agora ficou mais fácil para ele pregar suas heresias sem que ninguém discorde de sua pregação.

Lá no fundo, há uma imagem de um homem parecido com a da outra igreja. A imagem tem a forma de um homem. Chego-me a uma senhora que está sentada no muro, assistindo pelo telão, e lhe faço a inevitável pergunta:

-- Senhora, poderia me dizer de quem é a imagem de escultura lá no fundo?

-- Que ousadia? -- Disse-me ela. -- Como ousa me fazer uma pergunta como essa? Não vê que é o Ungido? O Profeta que nos revelou as coisas que estavam ocultas. Só você não sabe disso?

-- Não, não sabia. Nem o conheço. Só conheço um Ungido, que é Cristo, o Cordeiro de Deus.

-- Menino, você está muito desatualizado. Esse Jesus morreu, não significa mais nada para nós. O verdadeiro Ungido é aquele que revelou todas essas coisas e ungiu o pregador lá falando. Larga de ser incrédulo, seja crente!

Não queria ser ridicularizado de novo. O povo ficou cego de vez. Retirei-me sem que a senhora me visse, e fui caminhando de volta para casa. Mas antes, pretendia passar na igreja de um pastor de quem gosto muito e que prega a palavra de Deus como ela é, sem acrescentar nada.

Espero encontrar ela aberta. Felizmente, a rua por onde passo está tranquila, sem muita correria, por ser uma via secundária. A igreja do meu amigo pastor fica a três quarteirões daquela. Espero que ele e sua família estejam bem. Faz muito tempo que não os vejo. Mas sempre temos conversado por e-mail ou nas salas de chat cristãos que temos na internet. Pensando nisso, mandei um torpedo para Fefa, dizendo onde ia.

Infelizmente, está fechada, com um papel colado na porta. Chego-me mais perto para ler:

"Lacrado por ordem judicial, por utulizar expressões homofóbicas - Lei Federal nº ..."

Não me surpreende mais nada. Se enganar as pessoas com um falso evangelho pode, não pode mais falar a verdade com o verdadeiro evangelho. É o fim dos tempos. Mas não acredito que meu amigo possa ter ofendido alguém, ele mora na casinha ao lado, vou lá chamar por ele.

Bato na porta, sua filha de 15 anos me atende, ela fica feliz de me ver e corre para dentro sem abrir a porta e volta com o pai pastor.

-- Olá, amigo, como vai? -- Ele me perguntou, puxando-me para dentro e me dando um forte abraço!

-- Vou bem, irmão -- Respondi.

-- Como está a Fefa? Deixou-a sozinha?

-- Ela está bem, apenas assustada com essas coisas. E vocês, como estão?

-- Estamos bem, mas tristes porque tivemos que fechar a igreja.

-- Eu vi e li o comunicado. Quem o denunciou?

-- Eu estava apenas pregando um sermão para um grupo de fiéis, apenas umas poucas pessoas. Quando li na Bíblia a passagem de 1 Coríntios 6, verso 9, que diz: "Não sabeis que os injustos não hão de herdar o reino de Deus? Não erreis: nem os devassos, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem os efeminados, nem os sodomitas...", levantou-se do meio das pessoas um rapaz dizendo que eu era homofóbico e que devia ser preso. Então ele ligou para o grupo de defesa dos direitos humanos e nem pude terminar a reunião que eles já estavam aqui, fechando o salão.

-- Alguém se feriu? -- Perguntei.

-- Ninguém. Todos sairam correndo, ninguém ficou para me defender, a não ser minha esposa e minha filha. Vejo que está ficando cada vez mais perigoso pregar a Bíblia.

-- Não há dúvida que está perigoso. Até falar no nome de Jesus é motivo para calúnias. O Senhor viu que as igrejas estão destruindo Bíblias?

-- Sim, eu vi pela televisão e outras pessoas me contaram também. Agora estão adotando uma bíblia falsa, recheada de revelações de um tal Profeta.

-- Passei em frente de duas dessas igrejas e nas duas fui ridicularizado por não compartilhar dessas revelações.

-- Tome cuidado! Não fique muito tempo na rua. Sua esposa deve estar aflita te esperando.

-- Não se preocupe, pastor, ela já está avisada. Só vim ver se vocês estão bem, e fico feliz de saber que realmente estão.

-- Antes de ir, vamos orar, nós quatro juntos, pela segurança de todos nós.

Colocamos nossos braços em volta do ombro um dos outros e oramos, em voz baixa, pois os vizinhos estão hostilizando todos os cristãos:

--"Querido Senhor. Misericórdia! Pedimos em nome de teu santo Filho Jesus que envie anjos para nos proteger de todo tipo de mal. Venha logo o teu reino, pois já está difícil ser cristão verdadeiro hoje em dia. Precisamos, Deus, que guardes com segurança teus servos espalhados em todo o mundo. Em nome de Jesus, amém!"

Despedi-me da família com um caloroso abraço, prometendo visitá-los em breve, na esperança de que as coisas pudessem se acalmar.

Antes de sair, pedi ao pastor que entrasse no nosso grupo de discussão, pois pode ser que ainda encontremos alguns dos sete mil remanescentes, que não dobraram os joelhos a este insano sistema mundial.

Sinto-me mais reconfortado, a oração que fizemos surtiu efeito. Estou perto de uma avenida movimentada, que terei que atravessar. Enquanto espero, vejo passar um caminhão cheio de corpos de pessoas mortas. Então era assim que vai ser daqui para a frente? Parou logo adiante e um grupo de homens saídos de um bar joga para dentro do caminhão outro corpo, que havia morrido com vários tiros, há bem pouco tempo. E as famílias? não tem mais o direito de enterrar seus mortos?

Agora é que me assustei. Não quero ser como um deles. É melhor andar rápido para casa e ficar com minha querida Fefa.

Fui difícil precensiar isso tudo. Ainda há corpos de pessoas jogados nas calçadas. Algumas foram atropeladas, outras foram mortas a tiros, qualquer coisinha à toa agora é motivo para morrer. Evitei olhar nas pessoas. Os bares estavam cheios de pessoas embriagadas. Muitas discutem acaloradamente, falam palavrões impublicáveis. Mulheres que antes eram recatadas, agora vendem seus corpos em troca de alguns trocados.

As crianças, meu Deus! As crianças estão abandonadas como se fossem animais. Estão sujas e mal vestidas. Os pais tornaram-se tão mesquinhos. Não dividem mais a pouca comida que lhes restam com seus filhos. Obrigaram-nos a mendigar nas ruas o pão que deviam comer. Isso me entristece muito.

Finalmente, consigo atravessar, mas ainda estou na metade do caminho. Acho melhor continuar pela avenida principal, pois não queria ser tratado como mais um indigente se me acontecer uma tragédia.

Há uma peerseguição policial em curso. Encosto-me cada vez mais contra o muro, dois carros em alta velocidade fogem de um comboio policial, atropelando pedestres, batendo em outros carros, subindo nas calçadas, tudo isso sem parar.

Felizmente, posso ver ao longe o prédio onde moro, fico feliz de ver a luz do quarto onde minha esposa está me esperando, vejo sua silhueta. Me alegra saber que ela está bem, ela está esperando por mim. Deus, obrigado por cuidar de teu servo. Ajuda-nos a vencer esta batalha contra as forças do mal.

Entro no prédio correndo, fecho todas as portas, os vizinhos também estão assustados, com todas suas crianças. Espero que todos estejam bem. Entro no meu apartamento e Fefa corre para os meus braços. Nos abraçamos longamente sem dizer nada. Apenas ficamos ali, na sala abraçados.

Obrigado, Senhor!

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