quinta-feira, 8 de abril de 2010

Capítulo 18

Falta pouco para que eu possa largar tudo e ir para casa. Estou preocupado sobre como voltarei, sem sofrer algum tipo de acidente no percurso. Creio em Deus que ele cuidará de mim.

O relógio custa a andar. Minha mesa está abarrotada de processos, muitos são novos, distribuídos hoje e outros foram resgatados do arquivo, só porque uma das partes deixou de cumprir o acordo, ou porque se arrependeu de fazer o acordo.

Estou cansado, com calor e suando. Sem água disponível, sem um ventinho para refrescar. Só não entendo como ninguém toma uma atitude e liga de vez o ventilador ou o bebedouro para que possamos tomar água gelada. Esse decreto presidencial parece querer acabar com as pessoas.

Enquanto trabalho, dá para ouvir os gritos do lado de fora do Cartório. Há um grupo de pessoas discutindo violentamente, falando todo tipo de palavrão e ameaças de morte. Houve tiros outra vez. Agora entre ladrões e traficantes que tentam controlar seus feudos na cidade, os quais compareceram no Fórum para libertarem seus comparsas.

Mesmo assim, ninguém é dispensado do trabalho. Imagino que, ainda que uma bomba destruísse metade do prédio, continuaríamos trabalhando. As pessoas estão assustadas, mas ainda estão agressivas. Não vão nos deixar sossegar nem um minuto.

Num dos processos que foram sorteados para mim, uma das partes alega que o réu lhe deve dez reais, só isso, mas exige de qualquer maneira que a pessoa lhe pague. Entrando no sistema para pesquisar sobre o nome do autor, descobri que a mesma pessoa que cobra também está devendo para outros credores, uma quantia insignificante.

Que absurdo. Ninguém está disposto a perdoar uma dívida tão pequena que acabam abarrotando o sistema judiciário de processos. E a confusão continua rolando lá fora.

Uma bomba explodiu no estacionamento. Vários carros destruídos. Incendio de grandes proporções. Ninguém se feriu, graças a Deus, mas a perda material foi muito grande. Ninguém foi dispensado, todos continuam trabalhando e vem cada vez mais processos novos.

Será que vamos poder ir para casa no horário? Ou vamos ter que atender à demanda até tarde da noite? Espero que não. Quero ir para casa, no meu horário, pois não ganho nada se trabalhar além do horário preestabelecido.

Os advogados gritam muito, não parecem se importar que precisamos de concentração e de que estamos sobrecarregados. Mais uma explosão de bomba, ninguém se mexe, só se assustam. Meu coração está acelerado. Minha cabeça começa a doer. Levanto-me, sob olhares de censura dos advogados, vou ao fundo e tomo um pouco de café, que estava frio e amargo. Eca! Nem mesmo podemos tomar um café para reforçar?

Meus colegas também estão sobrecarregados, quase não suportando o calor nem a sede. Tenho pena deles. Abandonaram tão cedo aquele que lhe dava descanso, o refrigério da nossa alma. Se permanecessem nele, não estariam nessa situação. Vi que uma das minhas colegas jogou no lixo a Bíblia que estava lendo. Tive vontade de perguntar-lhe o por quê, mas me esquivei. Ela estava com uma cara de quem não queria ser incomodada.

Voltei ao meu posto. Dei uma olhadela para a porta de saída e vi que havia uma multidão sedenta por justiça. Justiça própria, diga-se. Justiça para satisfazer seu próprio ego, como aquela ação de cobrança de apenas dez reais.

Ainda falta uma hora para o fim do expediente. Não tenho pretensão de ficar além deste horário. Se mandarem ficar, já sei que ninguém vai querer obedecer. Vai ser uma rebelião violenta. e as pessoas lá fora estão agressivas, imagine o pessoal que trabalha n os cartórios!

Não há paz lá fora, nem sei o que está acontecendo, além das discussões e das explosões de bombas. Tudo o que quero é voltar para casa e ver minha querida esposa. Já estou preocupado com ela, temo que ela também se desvie do bom caminho que Deus nos mostrou. Faço meu trabalho, esperando apenas o final do expediente.

Assim que termina o expediente, alguns advogados arrogantes nos pediram para fazer alguns serviços, mas nosso chefe foi enérgico e disse que o expediente terminou e que cada um iria para casa, independente de terminar o trabalho. O Edifício do fórum ainda estava cheio, os policiais estavam solicitando que as pessoas se retirassem, com dificuldade.

Com dificuldade consegui sair do prédio. Do lado de fora pude ver o estrago que pessoas sem Deus podem fazer. Muitos carros incendiados e virados, pessoas sendo levadas para o hospital por passarem mal e outras ficaram jogadas nas ruas, para sangrarem até morrer. Parecia que estava vivendo um filme de guerra e terror.

Só os poderosos puderam ser socorridos. Os que não tinham recursos estavam sofrendo nas calçadas sem que ninguém lhes prestassem ajuda. Olhei para um jovem que estava ferido com arma de fogo, sangrando muito, peguei meu celular e liguei para a emergência, na tentativa de poder salvar sua vida. Demoraram para atender:

-- Qual a sua emergência?

-- Em frente ao Fórum há um rapaz sangrando, ferido por arma de fogo. Poderiam mandar uma ambulância para cá, por favor?

-- Estamos todos ocupados. O rapaz tem pulso?

Peguei o pulso do rapaz, não havia batimentos. Informei à atendente e ela disse:

-- Lamento. É um caso perdido. Um caminhão passará aí para recolhê-lo.

Desliguei o telefone. Não suportava ouvir a palavra "recolher". Isso não é aplicável numa situação dessa. Deixam as pessoas morrerem sem resgate para recolher seus corpos e jogar, não sei onde.

O rapaz já estava morto, cobri-o com sua jaqueta com que estava vestido. Procurei alguma coisa que pudesse identificá-lo a fim de relatar o caso a sua família. Mas ele não tinha nada, com certeza, fora roubado. Continuei meu caminho. Por todo lugar para onde olhava, haviam corpos, pesosas doentes, sem esperança de serem resgatadas. Outras estavam roubando o que podiam achar daqueles que já estavam mortos, ou que não podiam mais resistir de tão fracos que estavam.

E a igreja? Será que a igreja ainda estava na terra? Creio que sim, eu estava. Fefa estava. E outras pessoas fiéis também estavam na terra, como um remanescente. Lembrei-me daquela igreja que visitei ontem. Fui lá ver como estava. Mas não fiquei feliz.

Ao longe pude ouvir:

-- Deus, exijo que me dê riquezas... Faça isso, Senhor... Faça aquilo, Deus...

Só pedem, sem nada oferecer. Agora Deus é servo? Agora Deus é submisso à vontade? Cheguei mais perto e o que via era uma grande imagem de um homem e uma arca dourada onde as pessoas depositavam dinheiro e diante da qual estavam prostradas, orando e exigindo coisas. Havia um monte no lado da porta, fui ver o que era. Fiquei mais triste ainda só de ver: Bíblias queimadas, rasgadas e semidestruídas. Por que fizeram isso?

Perguntei a um homem que estava na porta:

-- Que aconteceu com as Bíblias?

-- Essas são falsas. A verdadeira é esta aqui.

Ele me mostrou um livro vermelho, em cuja capa estava escrito em letras douradas: "A Bíblia Verdadeira, recebida pelo profeta de Deus na Terra"

Tornei a perguntar-lhe:

-- Qual a diferença entre aquelas no monte e esta?

Ele respondeu:

-- Aquelas tem muitas passagens negativas, fala muito sobre o pecado, morte e destruição. Esta que foi revelada ao Profeta tem muitas passagens sobre prosperidade financeira, saúde, curas e outras coisas que nos animam. Não é preciso mais falar da cruz, arrependimentos nem confissão de pecados, porque isso tudo já é passado, basta praticar o que está escrito nesta que a vida de todos vai bem.

-- E Jesus?

-- Jesus não era aquele homem pobre e maltrapilho que a gente achava que era. Ele era um ser poderoso, rico e própsero. Se ele era assim tão poderoso, não teria morrido na cruz. Ele nunca morreu na cruz. Morreu de morte natural e nele nós nos espelhamos.

Que absurdo -- pensei comigo mesmo. Ele olhou para mim e disse:

-- Venha participar da nossa festa. Olha o Deus verdadeiro que nós adoramos!

Fiquei irado e respondi:

-- Por que eu iria? vocês se desviaram de Deus e querem me arrastar para o inferno? Que o verdadeiro Deus tenha misericórdia de todos vocês.

Ele me encarou, os olhos ardendo em ira e disse:

-- Você é daqueles que pararam no tempo? HÁHÁHÁ! Vá para seu Deus surdo e mudo! O nosso Deus é este, revelado ao nosso profeta. Ele nos dá tudo o que pedimos agora e imediatamente. Vai ficar na sua igrejinha, seu herege!

Outras pessoas sairam da igreja e o homem relatou a eles o que eu era. Todos cairam na gargalhada, aquela gargalhada horrenta que já tinha ouvido em algum filme de terror.

Eles devem estar possuídos de demônios para agirem dessa forma. Adoram uma imagem de escultura que um falso profeta lhes revelou e ainda utilizam uma falsa bíblia com um falso evangelho para enganar os seguidores. Volta logo, Jesus!

Está escuro. O ar continua poluído, mas pelo menos não está tão quente como foi durante o dia. Enquanto caminhava, orei ao Senhor:

-- Senhor, meu Deus, preciso muito de ti ao meu lado. Sinto que minha caminhada para casa vai ser muito perigosa, mas sei que tu estás aqui comigo e teu cuidado me conforta. Perdoa, Senhor, a maldade do povo. Ajuda-me a encontrar irmãos que ainda não dobraram os joelhos aos deuses deste mundo, mesmo que eles estejam longe, ajuda-me a entrar em contato com eles. Amém!

E fui caminhando. Com a certeza de que Deus ouvira minha oração e enviara seus anjos para me acompanhar. Por isso, eu cantava aquela linda canção que diziq que queria estar mais perto dele.

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