segunda-feira, 28 de junho de 2010

Capítulo 23

Faltava pouco mais de duas horas para a meia noite. Nosso programa de comunicação instantâneo está agora com duzentas pessoas, alguns escrevendo, outros falando pelo microfone e outros apenas observando e aprendendo. Ainda precisávamos tomar certos cuidados em relação aos vizinhos. Lá fora continuava muito barulhento, algumas pessoas ainda estavam praticando delitos. Dava para ouvir tiros, brigas, discussões e carros correndo em alta velocidade, cantando pneus e brecando com violência.

Não era possível conversar com as mais de duzentas pessoas ao mesmo tempo, nossa tela de computador não era suficiente para mostrar todos os participantes. Brinquei com todos dizendo que precisava de uma tela de 65 polegadas para poder ver todo mundo. Todos tinham fotos, e era proibido o anonimato e a divulgação de senhas e perfil fora do programa também não era recomendada.

Mas o gênio de informática que criou o programa facilitou demais ao colocar um mecanismo de pesquisa onde poderíamos encontrar a pessoa com quem quiséssemos conversar, também é possível conversar em particular. Deus tem abençoado muito este irmão ao dar-lhe uma inteligência tão grande a ponto de nos presentear com este programa, bem na hora que mais precisávamos dele.

Dava até para ouvir músicas, todas cristãs, anterior àquele movimento chamado gospel, que de gospel não tinha nada, que apenas travestiu as coisas mundanas em uma roupagem que os crentes pudéssem aceitar. Mas na verdade era satanás oferecendo a maçã para Eva dizendo que era agradável aos nossos olhos. E deu no que deu: muitos crentes sinceros de outrora passaram a pregar um evangelho estranho no nosso meio, afastando milhares e milhares de verdadeiros cristãos para longe de Deus.

Muitos desses ex-cristãos agora estão adorando o "Profeta". Não aceitam mais nem o que está escrito na Bíblia. Todas as palavras de Bíblia foram difamadas. Todos os pastores que pregavam o verdadeiro evangelho foram presos, torturados e mortos, restando ainda um pequeno remanescente que vive agora escondido em algum lugar deste mundo tenebroso.

Todas essas coisas foram relatadas pelos queridos irmãos no programa. Ficamos tristes com o que está acontecendo, mas um dos irmãos nos encorajou para não ficarmos tristes, pois a vinda do Senhor está bem próxima, e se for da vontade dele, ele nos levará consigo, antes que venha o grande dia do mal.

Pedi licença aos irmãos para verificar a origem de um cheiro de queimado. Levantei-me e pedi a minha esposa que ficasse no quarto conversando com os irmãos e pedindo orações por mim. Olhei pela vidro da janela da varanda e reparei uma fumaça negra vindo do estacionamento. Saí e olhei melhor, os carros estavam pegando fogo. Alguém atirou coquetel molotov sobre o estacionamento e provocou o incêncio. Todos os vizinhos estavam gritando, pedindo ajuda e outros, utilizando o hidrante do prédio, tentavam controlar o fogo. Fui ajudar. Peguei a mangueira e liguei numa torneira, outros se juntaram com baldes cheios de água... por fim, em trinta minutos terminamos de controlar o fogo, apenas alguns carros foram destruídos e outros sofreram pequenos danos. Ninguém se culpou. Não seria necessário porque os ânimos do povo lá fora estavam exaltados.

Um dos vizinhos disse que havia chamado os bombeiros, mas eles não tinham equipamentos disponíveis porque estavam atendendo ocorrências em vários lugares da cidade. Não era novidade, já que nem atendimento médico havia, nem policiais suficientes para atender chamadas.

Voltei ao apartamento, passei pelo banheiro a fim de me lavar e tirar a fuligem. Expliquei aos irmãos o que tinha acontecido e muitos deles relataram que a mesma coisa está acontecendo perto deles também. Alguém levantou a questão:

-- Como faremos para trabalhar? Podemos sair de casa amanhã e enfrentar a ira do mundo?

O irmão da cidade de Santo André, que naquela hora era o nosso líder, disse o seguinte:

-- A situação é crítica. Não sabemos ao certo o que será amanhã. Para não despertarmos suspeitas, devemos deixar nossas Bíblias em casa, orar antes de sair e orar uns pelos outros em espírito. Não façam nada, nenhum gesto ou olhares que possam denunciar nossa condição de cristãos verdadeiros. Apenas vigiemos. Se tivermos que padecer nas mãos dos maus, que padeçamos como mártires, e não como os mundanos.

-- Amém. Louvado seja o Senhor -- responderam todos, uns pelo sistema de som e outros pela escrita.

É o meu caso. Recebi duas reprimentas do chefe e ele sabe que eu sou cristão. Se houver amanhã irei com muito cuidado, infelizmente, terei que deixar minha amada Bíblia em casa só para não despertar a ira dos anticristãos. Ah, se me perguntarem, deverei mentir? Coloquei esta pergunta no programa, que foi prontamente respondida pelo irmão líder:

-- Mentir está fora de cogitação. Se me perguntarem se sou cristão, responderia que sim. Não quero jogar fora todos esses anos de lealdade ao Senhor só por causa de uma mentira. Mentir que é cristão para salvar a pele é igual negar o Senhor Jesus.

Resposta processada e aceita. Farei isso. Sinto muito se vou entristecer alguém, a alegria de estar ao lado de Jesus será incomparávelmente melhor. Minha esposa também falará a verdade. Não temos medo de enfrentar a morte, afinal ela já foi vencida pelo Senhor Jesus.

Campainha tocando... quem será a esta hora da noite? Eu mesmo fui atender, não queria que minha amada esposa fosse ferida ou sequestrada.

Era apenas a filha da vizinha, pedindo um pedaço de pão e um copo de leite porque estava com fome e os pais ainda não tinham voltado do trabalho. Foi deixada no portão do prédio pela van escolar e alguém a deixou entrar e está assim desde que chegou.

Chamei minha esposa e ela acolheu a menininha. Tinha ela apenas seis anos e é muito esperta, disse que papai e mamãe não foram lá buscar ela e que ficou esperando por várias horas até que a diretora da escola resolveu pedir a algum motorista de van que a trouxesse para casa. Nem em casa seus pais estavam e ela teve que ficar no hall em frente ao seu apartamento até não aguentar mais de fome.

Fizemos um lanche natural e um chocolate com leite, conforme a garotinha ia aceitando. Perguntamos pelo telefone dos pais e ela disse que estava na mochila. Tentamos ligar para o número indicado que era o da mãe. Ninguém atendeu. Tentamos mais vezes e nada. Perguntamos para a garotinha se ela podia dormir em casa e ela disse que sim, já dormira enquanto esperava os pais na porta do apartamento e que uma cama lhe faria ficar melhor.

Antes de colocá-la para dormir, minha esposa deu-lhe um gostoso banho e subiu com ela ao seu apartamento para buscar umas roupas limpas e outra muda para o caso de ela ir à escola na manhã seguinte. Ficamos com pena da criança, não sabemos o que teria acontecido com seus pais. Eles eram comerciantes e trabalhavam no centro da cidade. Não seria normal eles esquecerem a filha na escola e nem voltarem para casa. Tentamos várias vezes ligar sem que ninguém atendesse. Explicamos à menininha que não conseguíamos falar com ninguém no número que ela nos deu. Perguntei se ela não tinha outro número de telefone, ela disse que não. Que só a mãe ia buscar na escola e o pai ficava no comércio.

Será que valeria a pena solicitar ajuda da polícia? Se eles não atendem simples chamadas como atenderiam a um pedido de socorro? Voltamos aos computadores e a garotinha ao nosso lado, sentada numa cadeira observando as letrinhas subirem à medida que digitávamos.

Contamos aos irmãos o caso da garotinha. Perguntamos o que deveríamos fazer para que não seja considerado sequestro ou, pior, uma armadilha. Não poderiam reclamar, pois a menina estava na nossa porta pedindo um bocado de pão e um copo de leite que prontamente lhe oferecemos. Ela é esperta e responderá se alguém disser o contrário.

Quando olhávamos para ela, ela nos retribuia com um sorriso, estava brincando com sua bonequinha que trouxe do apartamento. Ficará aqui até que consigamos contato com os pais ou que eles voltem para casa. Caso contrário, ela ficará conosco até que alguém se dê pela falta dela. Não queremos que ela fique abandonada neste mundo tão mau. Olhem só a carinha de anjo dela, tão inocente!

Minha esposa a colocou para dormir, ela estava ficando assustada com a barulheira lá fora. Ficou no outro quarto com ela a fim de conversar sobre Jesus e guardar dentro dela as palavras. Para nossa surpresa, ela já sabia quem era Jesus pois frequentava a igreja com os pais e participava ativamente da escolinha para ciranças da igreja. Agora faz sentido. Se seus pais eram cristãos, alguma coisa deve ter-lhes acontecido. Alguém os denunciou às autoridades de que eles eram cristãos e os prenderam. Ainda não sabemos de nada.

Continuei ligando para o celular tendo o cuidado de não falar coisas indevidamente. Alguém no outro lado atendeu, mas ficou escutando. Por fim falei:

-- Boa noite, este telefone é da senhora fulana?

-- Quem quer saber? -- era uma voz de homem, tom grave e autoritário.

-- Sou um amigo dela, há pouco tempo.

Evitei mentir, na verdade conhecia ela de vista, nunca soubemos que eram crentes.

-- Ela e seu marido estão num caixão, sendo levados para o cemitério coletivo. Se quer reclamar os corpos, deverá vir logo antes que seja tarde.

Fiquei mudo. Não saberia contar à menina... então respondi.

-- Que pena. Não tenho condições de fazer o enterro deles. -- imaginei que seria uma armadilha para nos pegarem. -- Agradeço seu contato.

E agora? O que seria da garotinha, sem mãe nem pai? Que falaremos com ela? Acredito que foi Deus quem a levou até nossa porta para que fiquemos com ela. Deus sabia o que fazer, ele sempre soube.

Fui ao quarto, minha esposa estava com ela no colo. Já estava dormindo. Quando ela viu meu rosto desolado, ela entendeu. Olhou para o rostinho de anjo no seu seio e chorou. Sentei-me a seu lado e juntos contemplamos o presente que Deus nos tinha dado. Vamos cuidar da menina até que algum parente venha e a reclame.

Colocamos ela na cama de hospedes, no mesmo quarto onde estavam os computadores. Teríamos que fazer silêncio para não acordá-la. Contamos o ocorrido aos irmãos, mais dois mártires foram para a glória! O líder disse que a situação estava piorando e tendia a piorar muito mais. Então, decidimos que à meia noite em ponto, desligaríamos os computadores e nos poríamos de joelhos a orar.

Faltavam pouco mais de quinze minutos para a meia noite. Os computadores estariam ligados até o horário determinado, para que, se alquém quisesse falar algo, era só dar o alarme.

Ficamos contemplando a menininha que dormia sem imaginar o mal lá fora. Ela estava em boas mãos, em boa companhia. Com pessoas que vão cuidar dela, que dariam a vida por ela. Ela dormia o doce sono dos anjos.

O líder chamou a todos. Leu a passagem de Mateus 24, mostrando que o fim de todas as coisas estava chegando, e tudo o que devíamos fazer era clamar, vigiar e orar. Ele agradeceu a todos pela presença no programa de comunicação instantânea, abençoou a cada um em particular e que, se ainda houvesse amanhã na terra, estaria ali de novo esperando por nós.

Nós nos despedimos e abençoamos uns aos outros. O programa simplesmente congelou. Off-line.

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